domingo, 24 de outubro de 2010

Olho neles

“Tropa de Elite 2” se propõe a mostrar o que está por trás da corrupção policial, tomando como exemplo as milícias que agem nos morros e subúrbios do Rio de Janeiro. O motivo da deterioração ética da polícia não é a índole doentia nem o baixo contracheque dos soldados; é a organização político-administrativa que lhe serve de suporte -- o chamado Sistema.
A palavra Sistema, por sua abrangência um tanto abstrata, anda meio fora de moda. É tudo e é nada, ao mesmo tempo. Um dos méritos do filme de Jose Padilha é dar nome aos bois, ou melhor, às piranhas e tubarões que são parte dele.
Com uma clareza quase didática, o roteiro mostra que a violência das milícias é reflexo de uma viciada estrutura de poder. Alimenta-se da ambição dos políticos, que para se eleger não respeitam os limites entre o lícito e o ilícito. As milícias são apenas uma peça (talvez a mais visível) de uma engrenagem cujo comando transcende os quartéis.
O capitão Nascimento descobre isso devido a uma operação malograda que comandou, na qual um dos representantes dos Direitos Humanos constata o assassinato de um preso. Punido com a transferência do Bope para a Secretaria de Segurança Pública, ele passa a conhecer bem o funcionamento dessa instituição, que subordina as suas atribuições à missão suprema de reeleger o governador. Para isso vale tudo, inclusive roubar armas e atribuir a culpa aos bandidos.
Nascimento torna-se então um inimigo do Sistema, contra o qual arremete como um solitário herói romântico. Sua indignação aumenta depois que o filho se fere num atentado em que ele, Nascimento, era quem devia perder a vida. A partir daí nada o cala, nada o modera, nada o detém. E sua voz termina se fazendo ouvir numa CPI da Câmara.
O estrondoso sucesso mostra a sintonia do público com as denúncias feitas pelo filme. Muito do que nele aparece, afinal de contas, pode ser visto com alguma constância em jornais e TVs. Ver ali retratada parte do nosso cotidiano político é uma forma de repúdio e de catarse. Serve também de alerta em tempos de eleições. É como se os milhares de espectadores quisessem passar um recado aos eleitos e aos que agora pretendem se eleger: “Cuidado, pessoal. Estamos de olho”.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Eleições na ponta da língua

Como tratar numa coluna de língua portuguesa o resultado das últimas eleições para o governo do estado? Bem, tudo começou com uma elipse; um dos candidatos se ausentou do debate promovido por uma importante rede local de televisão.
Certamente lhe disseram que certas ausências, por evocar a pessoa sem lhe explicitar a dimensão física, dão mais prestígio do que a simples presença. Faltar é crescer na lembrança, fazer-se presente na imaginação -- e aqui chegamos à metonímia, que é um tropo mediante o qual se designa alguém, ou alguma coisa, pela indicação de elementos capazes de evocá-los. Tudo naquela noite -- a começar do lugar vazio -- faria lembrar o faltoso.
Essa é uma interpretação. A outra é a de que os marqueteiros do candidato o convenceram a não comparecer porque ele já estava praticamente eleito. E aqui chegamos a um aparente paradoxo: como alguém que tinha larga vantagem nas pesquisas perde para o segundo colocado? Uma vez que isso põe em xeque a eficiência dos institutos de pesquisa, propõe-se que daqui em diante eles mudem a metodologia. Em vez de a margem de erro ou acerto ficar em dois pontos percentuais, ela deve saltar para entre 10 e 15! Assim nenhum instituto vai falhar nem os candidatos vão antecipadamente pensar que já venceram.
Outra alternativa é partir para a ironia, convocando o polvo alemão. Como ele acertou todos os resultados da Copa, inclusive a derrota do Brasil, não lhe seria difícil apontar um de seus tentáculos para o futuro eleito -- que de antemão poderia se considerar “escolhido pelo polvo”.
Há quem discorde de que Ricardo Coutinho ultrapassou José Maranhão porque este se ausentara do debate. Vê nessa tese uma hipérbole, um exagero, alegando que em algumas das últimas pesquisas Coutinho já antecipava a reação. Isso pode ter fundamento, mas a ausência do governador foi a justificativa mais comentada. Ele se fez defectivo, como certos verbos que não têm todas as formas e devem ceder a outros seu papel semântico (os mais conhecidos são “adequar”, “precaver-se” e “reaver”). A quem o candidato cedeu o seu papel? Ao maior oponente, que além de atacar sem contestação ainda se beneficiou do argumento da ausência (válido apenas, como ocorreu, quando a falta do interlocutor é voluntária).
Restou ao público amargar a antítese de um combate anunciado e que não se realizou. Isso é péssimo em tempos midiáticos como o nosso. Trocamos tudo por uma boa atração na TV, seja ela um filme, um show ou um capítulo da novela das oito. Melhor ainda quando o drama, em vez de personagens fictícios, é protagonizado por pessoas reais. Isso lhe aumenta a catarse, ou seja, a capacidade de nos aliviar de certas tensões da alma.
Muita gente não desligou a TV naquela noite pelo desapontamento de ter deixado de saber mais sobre a plataforma dos candidatos. Desligou por terem lhe frustrado a expectativa de um programa atraente, marcado pela logomaquia (duelo verbal). Como hoje somos telespectadores antes de sermos eleitores, houve quem não perdoasse o ludíbrio e procurasse traduzir isso no voto. Mas vem aí o segundo turno, digo, o segundo round (para encerrar com uma metáfora). E desta vez ninguém vai deixar o ringue vazio.

O poder da frase