domingo, 30 de dezembro de 2012

Conselhos para o novo ano

Leitor, é comum nesta época fazer um balanço para ver o que deu certo e o que deu errado no ano que termina. Geralmente o saldo é negativo, mas você deve permanecer otimista. Ter chegado ao dia 31 de dezembro foi uma proeza, mostra que você tem habilidade para sobreviver. Não há por que desconfiar de que esse dom vai abandoná-lo em 2013. Sendo assim, trate de enfrentar o próximo ano de peito aberto (e portas de casa bem fechadas!).
Certamente você espera alguns conselhos para se sair bem no próximo ano. Não há fórmula para a felicidade, mas algumas medidas ajudam (no caso das mulheres, o ideal é 80 cm de busto e 90 de quadril). Estabeleça metas, embora saiba que não vai cumpri-las. Aliás, coloque o não cumprimento das metas como uma das suas metas prioritárias, assim você não poderá dizer no fim do ano que não realizou o que prometeu. Além disso, se mostrará uma pessoa realista, pragmática, e fará algum suspense sobre quais metas realizará e quais deixará de lado. Isso vai trazer alguma emoção a sua vida.
Uma das metas essenciais é a que envolve o cuidado com o corpo a fim de garantir a saúde. Então trate de incluir em seus planos a perda de peso. Comece cortando gordura, mas não faça isso com faca ou tesoura, pois poderá contrair uma grave infecção. Prefira emagrecer por meio de uma dieta pobre em calorias (e rica em sensaborias, claro). A provação a que submeterá seu paladar pode lhe garantir um desconto nos anos que terá de passar no purgatório.
Procure se relacionar bem no trabalho, evitando demonstrar menosprezo pelos colegas (eles sabem que você é superior). Lembre-se de que seu chefe é pago para ser duro, chato e às vezes grosseiro. Mostre-se então compreensivo, mas sem extremos de pseudoafeição, como chamá-lo de “chefinho”. Isso poderá ter efeitos terríveis se ele for casado e o diminutivo chegar aos ouvidos da sua mulher -- que o chefia em casa.
Cultive o hábito de refletir sobre a sua vida, mas não muito, a fim de não cair em depressão. Lembre-se de que sempre nos sentiremos em débito com nós mesmos, e quem se acha quite é porque não tem ideia do pouco que vale. Dizem que só os medíocres vivem satisfeitos. Um dos desafios da vida é se conformar com pouco sem ser medíocre; isso é possível, desde que se inclua nesse “pouco” alguma coisa de Mozart, Shakespeare, Proust... Dá para passar sem o resto.
Cultive amizades, mas sabendo que às vezes é melhor um amigo na praça do que na cozinha da gente. Mantenha a privacidade pelo menos quando estiver no banheiro -- mas resista à tentação de se isolar, para isso deixando fora do seu alcance fitas adesivas, sacos plásticos ou qualquer outro material que possa cortar a corrente que o liga ao mundo. Durma oito horas por dia (e mais algumas à noite), tendo sempre o cuidado de fechar os olhos antes de adormecer. Faça coisas que nunca fez, como pentear os cabelos de trás para frente ou se coçar com um aspirador de pó. Pratique esportes nem que seja uma vez por ano. Tenha paciência com o cachorro do seu vizinho -- mesmo que ele tenha cachorro. E sobretudo procure se manter na linha quando estiver na agulha para ser cooptado pelos corruptos de plantão (que neste país são tantos...). Evoé.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Paixão e escrita

Dizem que a paixão cega, por isso os apaixonados são indiferentes aos defeitos do seu objeto. Uma tradução aproximada dessa verdade se encontra no velho ditado: “Quem ama o feio, bonito lhe parece”.
Os apaixonados são movidos por razões que só Freud explica – e aqui não faço jogo de palavras. Segundo o criador da psicanálise, nossa atração pelo objeto amoroso não se justifica racionalmente. Decorre de nebulosas determinações inconscientes, que remontam a nossas vivências infantis.
O amor paixão (pois há o amor amor, que não se enquadra no modelo a que me refiro) não passa pelo teste de realidade, pois se alimenta da fantasia. Alguém já escreveu que a gente se apaixona por metáfora, ou seja, pela semelhança que encontra entre o ser real e uma imagem dele moldada em nosso inconsciente. Nunca são a mesma coisa, e um (o ser real) pode até desmerecer o outro.
Eis por que a paixão tem um tempo, um prazo de validade; vai sucumbindo à proporção que do ser idealizado emergem os traços da pessoa real. É mais ou menos como naquele truque de espelhos em que a mulher se metamorfoseia em macaco. Lembro-me de um número desse tipo na Festa das Neves. Aos poucos Monga, a Bela, vai se transmutando num símio feio e agressivo. Só que, ao contrário do que ocorre na encenação, na vida a mudança não tem volta. O jeito então é domar o macaco, habituar-se com sua feiura, aprender a conviver com ele. Essas são artes do amor.
Enfim, ninguém se apaixona movido pela razão. Por isso achei curiosa esta passagem publicada num site de adolescentes:
“Sempre me correspondi com meus amigos via e-mail e acabei conhecendo outras pessoas por meio da rede. Cheguei a namorar um dos caras com os quais eu conversava. Mas fui percebendo, com o tempo, que ele escrevia muito mal. Uma vez cheguei a lhe devolver um e-mail com as correções. Ele ficou uma fera. Mas não dava para admitir coisas como ‘ficou para traz’, ou ‘voçê’, ou ‘vamos comê’. O namoro perdeu um pouco do brilho. Se antes de iniciar o relacionamento eu soubesse que ele escrevia assim, provavelmente não teria nem começado.”
A garota que escreveu isso é uma exceção. Para ela o feio linguístico não parece bonito; pelo contrário, é um defeito que pode tornar inviável um relacionamento. Samara (é o nome dela) não está disposta a se apaixonar por quem desconhece a língua a ponto de cometer erros grosseiros de ortografia. Quer alguém que saiba um mínimo de gramática.
Dirão os românticos que Samara afirma isso porque nunca amou de verdade. Pode ser. Mas o fato de ela condicionar a paixão a tais habilidades revela um espírito sério e cuidadoso. Ela no fundo sabe que a ligação amorosa começa com o corpo, mas se alimenta mesmo das ações e das palavras. E não dá para viver com quem não sabe se expressar.

domingo, 23 de dezembro de 2012

Papai Noel existe

Acreditei em Papel Noel mais tempo do que devia. Enquanto os meninos da minha idade desconfiavam de que ele era uma invenção, eu continuava firme a defender a sua existência. Talvez, quem sabe, esse fosse um mecanismo de defesa para preservar a infância.
O velhinho nem sempre trazia o que eu lhe pedira, mas ainda assim eu queria acreditar nele. Sem a sua visita, faltaria transcendência à festa. O milagre do Natal para mim não estava em saber que nessa data se comemorava o nascimento do Redentor. Essa era uma ideia vaga, distante, que me dizia pouco -- ou talvez nada.
A possibilidade de ganhar um bom presente me atraía mais do que a perspectiva de ser salvo. O céu para mim era acordar e ver ao lado da cama um velocípede, um carro movido a pilha ou um revólver “de verdade”, como o dos cowboys dos filmes.
Lembro-me de que certa vez um coleguinha me provocou: “Papai Noel não existe. Quem bota o presente ao lado da cama é o pai ou a mãe da gente.” “Mentira”, retruquei indignado. “Ele existe, sim.” O coleguinha afastou-se com um ar superior, certamente me achando um bobo. De noite, perguntei a minha mãe se o que ele disse era verdade. Ela desconversou, não quis destruir de uma vez a ilusão. Mas a partir daí começou a se desenvolver em meu espírito o germe frio da desconfiança. Desta para a descrença, foi um passo.
As crianças de hoje não vivenciam mais esse dilema. Como conciliar a crença no personagem que habita o Polo Norte com essas reproduções disseminadas nos shoppings? Fantasia pede imaginação, e não há como dar contorno imaginário àquilo com que nos deparamos todo o tempo.
Os simulacros de hoje têm barba longa, voz grossa, roupas vermelhas orladas de algodão. Falta-lhes a espiritualidade associada à figura do Bom Velhinho, mas isso é o de menos. Eles não estão ali para salvaguardar a crença no mito, e sim para predispor as crianças (e os pais) à liturgia profana do consumo.
Que se há de fazer? O mercado é que move o mundo, e não há como subtrair os eventos religiosos do seu império. Se ficou impossível acreditar num senhor gordo que se desloca num trenó puxado por renas, pelo menos é possível se deparar com a sua imagem nas casas comerciais. Essa é uma forma de reconhecer que ele... existe. Com suor, hálito e um maroto sorriso promocional.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Seleção de frases (20)

Tem gente que quer emagrecer, mas a única parte do corpo que exercita diariamente é a mandíbula.
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A prostituição mais triste é a que não se faz por dinheiro.
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Minha regra de autoajuda é: “Nunca desista do seu sono”.
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Há pessoas que são ilhas de ressentimento. Vivem cercadas de mágoa por todos os lados.
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Se o homem está “condenado a escolher”, como diz Sartre, então verdadeiramente não escolhe nada.
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Na vida há sempre aquele momento em que a gente não sabe se muda de emprego, desfaz um casamento de anos, rompe com um falso amigo -- ou vai dormir e espera acordar mais conformado no dia seguinte.
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Nascer é deixar o porto. Não é à toa que o processo pelo qual vimos ao mundo chama-se... parto.
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“Paraíso fiscal” é o lugar onde melhor se goza do furto proibido.
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A vida, um fardo; a imortalidade, um fardão.
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E se aquela catarinense que leiloou a virgindade não conseguir ficar famosa? Será o caso de lembrar o ditado: “Nem mel, nem cabaço”.



domingo, 16 de dezembro de 2012

Galanteios

Sou um simpatizante do movimento feminista, pois acho que a emancipação do homem depende da emancipação da mulher. Mas sou um feminista comedido e crítico. Certas reivindicações do feminismo contêm um radicalismo e uma autossuficiência que parecem produtos do ódio e do ressentimento. Elas encorajam a suposição de que as líderes do movimento são mulheres mal-amadas, que veem na militância uma maneira de se vingar dos homens.
É preciso estar prevenido contra o mau feminismo, que a pretexto de liberar a mulher quer retirá-la de todos os combates com os homens -- inclusive (ou sobretudo) os que se travam no domínio da sedução. Nesse domínio elas têm armas mais poderosas do que as deles e a capacidade de transformá-los, de chefes, em escravos galanteadores.
Uma parte do feminismo discorda disso, com o argumento de que a propalada astúcia da mulher no terreno da conquista amorosa tem sido usada em benefício masculino. Tanto é assim que essa “virtude” comumente se volta contra ela, aparecendo às vezes sob a forma de agressão... Lembrem-se as que menosprezam o jogo da conquista de que nem todo galanteio é assédio; e de que o assédio – em sua obsessiva e desigual persecução – está muito longe da lírica persuasão do galanteio.
O galanteio representa, na verdade, uma evolução de método e ocorreu em função basicamente da mulher. Foi uma conquista dela, apareceu para ela, já que ao homem (hoje e sempre) interessam basicamente os fins, e não os meios. O homem primitivo não perdia tempo com sutilezas. Premido pelo desejo, subjugava a fêmea puxando-a pelos cabelos e consumava o ato. Se ela resista, ele tinha argumentos literalmente de peso como pedras, rebolos, fundas ou o que estivesse à mão. Foi preciso muito tempo e uma outra visão da mulher para que essa forma de conquista evoluísse, primeiro, para o sorriso e a cara simpática – depois, para as fórmulas que, com o intento de seduzi-la, iriam levar em conta a sua vontade.
O galanteio é um apelo e um tributo. Com ele o macho afirma o desejo sem esquecer de lisonjear o objeto. Pela originalidade com que pratica essa lisonja, é que se faz atraente. O galanteio veio substituir os sangrentos combates através dos quais, em épocas passadas, o macho disputava a fêmea. De troféu conquistado com sangue, ela foi passando a motivo e tema de engenhosas expressões, refinando-se como objeto pela delicadeza e argúcia com que era requestada.
Não é à toa que o verbo escolhido para traduzir o apelo de conquista é “cantar”. Cantar uma mulher, mesmo de forma docemente pornográfica, é pedir a ela que venha executar conosco um dueto. É abdicar do solo primitivo e uivante com que o homem das cavernas, subjugando-a, acabava por reduzi-la a um objeto silencioso e inerte.
Pouco importa que o galanteio seja por vezes uma tática em função da qual o homem disfarça suas reais intenções. Talvez o melhor seja mesmo esse conteúdo implícito, que o disfarce torna difuso e atraente só para homenageá-la. Quem dentre elas não gostar de galanteios, queime o primeiro sutiã.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Amigas

Clarice e Lisete pareciam ter vindo ao mundo para ser amigas. Conheceram-se ainda meninas; mal uma bateu os olhos na outra, sentiu o que se poderia chamar “lampejo de afinidade”.
Assistiam às aulas em cadeiras vizinhas, e nos intervalos não se despregavam. Tinham a mesma opinião sobre os professores e os colegas, que pareciam tão diferentes delas! A amizade as colocava num mundo à parte, onde não havia rusgas nem estranhamentos.
Cursaram juntas o primário e o ensino médio. Uma sofreu na carne a angústia da outra com o vestibular. Clarice fez para medicina; Lisete, para enfermagem. A primeira teve de enfrentar uma concorrência bem maior, mas foi Lisete quem ficou a ponto de contrair uma gastrite. Não aceitava passar e ver a amiga ficar de fora. No fim tudo deu certo, e alguns anos depois estavam formadas.
Clarice namorou mais do que Lisete e terminou se casando. Com Otávio. O rapaz só chegou ao coração de Clarice porque caíra nas graças da amiga, que se tornou sua aliada e frequentemente lhe enaltecia as virtudes. Lisete saía com os dois, não se constrangia em segurar vela. Como era muito recatada e não gostava de namoros, terminou ficando mesmo para tia -- tia dos filhos de Clarice, é claro. Sentia os meninos como se fossem seus.
Viveram, envelheceram, e morreram um dia. Curiosamente, em datas próximas, de modo que suas almas seguiram de mãos dadas para o outro mundo. O destino só podia ser o Céu. Concorreu para isso a fidelidade que uma dedicou à outra, a qual foi interpretada por Deus como pureza de coração.
Chegando diante Dele, Lisete se apressou em pedir:
-- Querermos continuar juntas.
-- Para quê? -- quis saber o Criador.
-- Para chorar nossas mágoas, confidenciar nossos segredos, aliviar nossos momentos de solidão.
Deus riu com infinita bonomia, depois ponderou:
--Não há mais necessidade disso, minhas filhas. Aqui não há mágoas a serem choradas nem segredos que justifiquem confidências. Todos vivem numa transparente e contínua harmonia. Tampouco vocês vão se sentir sós. A solidão vem do vazio, da ausência de Absoluto; não atinge quem vive na plenitude do espírito, como vocês agora.
Lisete e Clarice se entreolharam um tanto desapontadas; a amizade teria de acabar. Se era assim, não havia remédio. Soltaram-se as mãos e cada uma seguiu para o seu nicho celeste.
Estavam felizes, não havia dúvida, mas no fundo de suas almas havia uma pontinha de ressentimento, ou talvez de saudade. Lembravam os tempos em que sofriam e tinham o ombro uma da outra para aliviar a dor.

(Em "A idade do bobo", p. 42)
Leia o livro em
http://www.bookess.com/read/14324-a-idade-do-bobo

O poder da frase