segunda-feira, 24 de outubro de 2016

"O mestre dos gênios"

        Esse filme trata da relação conturbada entre o romancista Thomas Wolfe e o editor Max Perkins. Perkins, que já editara livros de Hemingway e Scott Fitzgerald, parecia ter a experiência e o tirocínio adequados para lidar com o novato ansioso que lhe aparece com um calhamaço de centenas de páginas manuscritas. A relação entre os dois, contudo, não é fácil.  Desenvolve-se como uma parceria e um duelo que revelam muito sobre a atividade literária.    
             O filme toca dois pontos fundamentais no trabalho do escritor -- o da autoria e o da revisão. Até que ponto as modificações determinadas por um editor retiram do autor a legitimidade do trabalho? Em certa passagem, depois da incansável poda que Max faz em seus escritos, o romancista lhe pergunta até que ponto o romance já não seria dele, Max, e não do próprio Wolfe.  Haverá algum exagero nisso, mas é sem dúvida impossível reduzir a um quinto o número de páginas de uma obra sem alterá-la profundamente (escrever, enfim, é cortar). Levem-se também em conta as correções estilísticas que simplificaram uma escrita cheia de rodeios e preciosismos.
          Vendo as mutilações feitas pelo editor, Wolf sofria como se os cortes ocorressem em sua própria alma. “Eu penei para escrever isso, agora você vem e corta!” Eis outra lição que o filme nos dá: nem sempre mais sofrimento corresponde a mais valor artístico. O autor sabia o que lhe custara cada palavra, cada confissão, cada lembrança associada à figura do pai, mas isso não queria dizer que tudo que escrevera valia a pena. Talvez o que viesse da maior dor fosse pouco eficaz do ponto de vista literário. 
             Outro problema que o filme aborda diz respeito à entrega do escritor ao seu ofício. Uma entrega obsessiva e radical, que leva Wolfe a deixar de lado a família e desprezar a mulher. Com suas naturais cobranças, elas tendiam a roubar-lhe os momentos que pretendia (e precisava) dedicar ao trabalho. Só lhe interessava como companhia o editor, com quem se envolvia em discussões intermináveis. O preço do abandono familiar foi alto; custou ao romancista o ódio da mulher, levando-o à solidão e certamente precipitando a doença que o mataria.
            Wolfe e Max representam as duas dimensões que todo escritor de algum modo tem dentro de si. Um é a fantasia; o outro, a ponderação. Um se excede, o outro limita. O primeiro é o artista com seus interesses, fragilidades e ambição de glória. O segundo é o mercado com as suas leis. Os dois precisam estar em equilíbrio, pois o excesso de um ou de outro pode levar ao devaneio da imaginação ou à paralisia criativa – ambos inimigos da arte. 

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

A carta

Natália resolveu chamar Paulo para celebrar seu casamento.  Não sabia por que de repente lhe ocorrera isso, mas tinha curiosidade de o rever. Como foi ele quem a deixou, não se constrangeria de ser o celebrante -- mesmo que o noivo fosse um antigo rival. Tomou coragem, ligou para a igreja e perguntou quando podia encontrá-lo. Para lhe fazer uma surpresa, não disse de quem se tratava.
Horas depois, entrava no recinto contíguo ao altar. Sentou-se e, enquanto esperava o ex-namorado (achou esquisito pensar nessa palavra), correu os olhos pelo ambiente. Os móveis escuros, pesados, sugeriam renúncia e gravidade. Do conjunto emanava uma paz que devia ser o que ele procurava quando a deixou. Chegava a compreender que a tivesse trocado por uma vida solitária e sem maiores inquietações. 
Paulo entrou. Quando a reconheceu, ficou levemente pálido:  
         -- Você?!
         Ela sorriu, buscando afetar naturalidade. O rapaz mudara pouco; perdeu alguns cabelos e ganhou um ar meio espiritualizado, comum nos que desistem dos prazeres deste mundo. Sentaram-se um de frente para o outro, e Natália explicou o motivo de estar ali. Falou do casamento próximo, com Saulo...
-- Saulo?!
-- Sim. Sei que você não gostava dele, mas faz tanto tempo, não é? Além do mais... foi você quem desapareceu.
-- Mas como eu não podia desaparecer depois daquela carta?
          -- Que carta?
       -- A carta que me escreveu terminando tudo – sublinhou isso com um risinho amargo, revivendo a decepção de anos atrás. 
           Natália sentiu uma pequena tontura e mal ouvia as palavras de Paulo. Ele disse que a carta tinha sido um marco; depois de a ler, caiu numa melancolia que só encontrou alívio em Deus. “Fechou-se” por um tempo, sem falar com ninguém, e decidiu no seminário.
-- Sua carta doeu tanto, que não consegui mais ser o mesmo. Ainda assim guardei ela comigo, junto da Bíblia. Afinal de contas, uma entrou na minha vida por causa da outra.
         Após dizer isso encaminhou-se a um recinto lateral, de onde voltou com um envelope amarelado. Entregou-o a Natália, que àquela altura compreendera o que tinha acontecido.
-- A carta não era para você.
-- Como não era? Olhe aqui: “Para Paulo”, no envelope. E depois o vocativo: “Caro Paulo”.
-- Isso não é um “p”. É um “s”. A carta era para Saulo... Quando eu pedi a uma colega da escola que entregasse a ele, não pronunciei o nome do destinatário. Ela sabia de vocês dois e também deve ter confundido as letras. Meus professores de redação sempre disseram que eu devia corrigir isso, mas nunca dei importância. 
Paulo se levantou, atordoado.
-- Se a carta era para Saulo, por que o casamento agora?
-- Depois que você me deixou sem dar notícias, comecei a me sentir muito só. Saulo agia como se nada tivesse acontecido (e não tinha mesmo!). Imaginei que ele se comportava assim por ser persistente e não aceitar me perder, então não toquei no assunto da carta. Comparada com a sua atitude, a dele me parecia muito superior. Terminei aceitando-o como uma forma de lhe esquecer.
Ficaram em silêncio por um bom tempo. Quem primeiro falou foi Natália:
           -- E então? Faz o casamento? 
         -- Faço, é claro. E sei que vou me emocionar mais do que das outras vezes. Afinal, o noivo era para ser eu.
          -- Mas não vai dizer isso no sermão!  
         -- Não vou. Apenas eu e você vamos ficar sabendo. No sermão, o máximo que eu vou fazer é retificar o ditado. Em vez de “Deus escreve certo por linhas tortas”, “Deus às vezes escreve certo por letras trocadas”.
                                                                 ****

           Moral da história: Escreva sempre com letra legível. Você não sabe que peças o destino pode lhe pregar.

sábado, 15 de outubro de 2016

Aos mestres, com respeito

Veja e Época trazem reportagem sobre o novo mal que atinge nosso sistema de ensino: a indisciplina escolar. Digo “novoporque o mau comportamento em sala de aula sempre houve, mas não com as características que se veem agora.
A nova indisciplina não decorre apenas do desejo de desafiar a autoridade, que segundo psicólogos pode ser salutar em jovens que buscam a autoafirmação. Contestar, discutir, medir forças pode ser positivo para o desenvolvimento da personalidade. Estranho seria se a meninada aceitasse passivamente o que lhe é imposto, acomodando-se sem protesto aos padrões educacionais.
O que tem caracterizado os novos rebeldes é, além do desrespeito absoluto pelas normas, o desdém pela figura do professor. Antigamente o desafio não implicava o desrespeito; contestava-se a autoridade reconhecendo-a como autoridade, sem o propósito de reduzi-la a coisa menor.
Agora a rebeldia vem acompanhada de depreciação. Em muitos casos o professor é humilhado devido à sua condição social. Alguns alunos fazem questão de deixar claro que ele é um empregado pago por seus pais, e não tem portanto o direito de dar ordens. Manda quem paga. O resultado é que vem se instalando entre os professores o pânico de enfrentar a sala de aula. Muitos, quando podem, mudam de profissão.
Tudo isso constitui um equívoco lamentável. O professor não é um inimigo, é um aliado. Tem a função não apenas de formar o aluno, como também de levá-lo ao triunfo profissional. No ambiente competitivo em que vivemos, é estúpido desprezar quem nos ajuda.
O pouco caso que hoje se faz do professor reflete o menosprezo que existe pela escola. Ao buscar desmoralizá-lo, muitas vezes com a cumplicidade dos pais e dos donos de colégios, o aluno demonstra quão insignificante considera a instituição escolar. Se não está disposto a aprender sob a orientação de quem sabe mais, o que ele está fazendo na classe?
Nem sempre se pode ir aos mestres com carinho. Mas pelo menos que se vá a eles com respeito.

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Tempo e imagem

Chorar o tempo perdido
não traz de volta o passado.
Tampouco sabê-lo findo
nos deixa mais conformados.
            
Ninguém redime ou resgata   
a essência de um instante.
Há, contudo, nesse nada
um aceno triunfante. 

Se tudo é a soma daninha
de agoras que se consomem,
o futuro se adivinha
no turvo espelho do ontem.

(da série “Meus pecados poéticos”)


sábado, 8 de outubro de 2016

Diminutivos

        Poucas coisas são tão engenhosas na língua quanto o diminutivo. Ele não é apenas uma medida de tamanho ou de valor; é sobretudo uma forma de nos colocarmos no mundo. Uma estratégia de convivência, um meio de nos relacionarmos com as pessoas. Sem o diminutivo teríamos que enfrentar tudo em grau normal, quer dizer, na crua dimensão da realidade.
       O diminutivo é tão importante que merecia uma ode (está bem... uma “odezinha”). Ele é por excelência um recurso de abrandamento que nos torna mais simpáticos. O burocrata não pode ou não quer atender alguém e diz, para encorajá-lo a se manter sentado: “Um momentinho.” Esse momentinho, claro, pode se desdobrar em minutos e até horas. Mas o diminutivo ecoa no tempo de espera como um pedido de desculpas. Não dá para ter raiva de quem foi delicado conosco.
       Comumente o diminutivo traduz afetividade. Dele abusam os namorados quando se dirigem aos seus “queridinhos” e “queridinhas”. E as crianças se derretem diante dos “bichinhos” de estimação. Vinicius, que o Brasil ama, ficou conhecido como “o Poetinha” (por sinal, ele deve agora estar tomando um “uisquinho” em companhia de algum anjo).
      Outro efeito do diminutivo, e que está registrado nas gramáticas e manuais de estilo, é o de depreciação. Se um filme não presta, diz-se que é um “filminho” mesmo que ele se arraste além do tempo normal. Ou justamente por isso, pois nesse caso a longa metragem o faria ainda mais insuportável.
       Em grande parte das vezes, o diminutivo é apenas o invólucro de um conteúdo ameaçador. Se a sua mulher diz que está louca por um “vestidinho” que viu em tal vitrine, prepare-se para a má notícia: ele não custa menos de R$ 1.000,00! E quando o dentista diz que não vai doer, é só uma “picadinha”? Por acreditar nisso quando era pequeno, acabei traumatizado. Hoje não suporto dentistas, sobretudo os que nos enganam com diminutivos. São uns... “dentistinhas”.
       O diminutivo pode ser ainda um recurso de falsa modéstia. O escritor fala do seu “livrinho” diante dos colegas, mas no fundo o considera uma obra-prima. Talvez, quem sabe, lhe renda um “premiozinho” (e por que não o Nobel?). O ricaço compra um modelo sofisticado de automóvel e, para nos humilhar, chama-o de “carrinho”.
     Também se usa o diminutivo como um recurso de intensificação ou, dizendo melhor, de esmiuçamento. O filho aprontou alguma na escola e quando chega em casa ouve da mãe, que está uma fera: “Agora me conte o que houve. Tudinho”. “Tudinho” é tudo mesmo, sem lacunas nem disfarces. E o guri, se for inteligente, detalhará o que aconteceu para evitar umas “palmadinhas” (ou mesmo umas palmadas, pois ainda há pais e mães que não têm medo de ser denunciados).
       O diminutivo se popularizou numa época em que é cada vez mais difícil ter um vidão – ou mesmo uma vida. São tantas as restrições e os perigos, que à maioria de nós cabe mesmo uma “vidinha”. E para não sucumbirmos, a saída é dar um “jeitinho” em tudo. O “jeitinho”, que hoje é uma marca do nosso caráter, indica o reconhecimento de que nada se resolve de fato mas nem por isto se deve perder a esperança. Há sempre uma “luzinha” no fim do túnel. Se não quer brilhar para nós, sempre é possível dar uma piscadinha para ela.  
       Mas vejo que está na hora de terminar esta “croniquinha”, para não receber do leitor um... palavrão!

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Humor e autodepreciação

A autodepreciação é tradicionalmente uma fonte de humor. Falar mal de si tem alguma coisa de engraçado, e os humoristas sabem disso (que o diga, por exemplo, Woody Allen). Daí explorarem ao máximo os juízos negativos sobre si mesmos.

Um dos mais famosos exemplos disso é a frase de Groucho Marx: “Não entro para um clube que me aceita como sócio.” O autor dá a entender que, recebendo alguém tão insignificante, esse clube não pode mesmo ter qualidade. 

Por que será que a autodepreciação faz rir? Primeiro, pelo efeito surpresa. O ser humano é naturalmente egoísta e narcisista. Ninguém espera que Narciso encare a própria imagem e, em vez de se deslumbrar, assuma um ar contrafeito. Segundo, pela impressão que o humorista dá aos outros de que lhe são superiores. É mais fácil rir das fraquezas e dos infortúnios alheios do que dos nossos. E quando tais infortúnios ou fraquezas são autoproclamados, a coisa fica mais engraçada ainda.

Há um terceiro motivo: o mecanismo da identificação. Muitos dos que leem os comentários desabonadores têm de si o mesmo conceito. Afinal, como disse Valéry, os homens se distinguem pelo que aparentam e se assemelham pelo que escondem. Ninguém esconde o que é bom. A identificação, como bem mostra Freud, é um importante mecanismo de gratificação interior porque dá ao homem a certeza de que ele não está sozinho.  

Vez por outra ensaio algumas frases na linha autodepreciativa. O objetivo, claro, é fazer rir, mas isso não quer dizer que às vezes eu não concorde com o que digo (e haja autodepreciação!). Se, como diz Pascal, o eu é detestável, tentemos pelo menos encarar isso com humor. Eis algumas dessas frases (que evidentemente não prestam, vindas de alguém tão sem graça como eu...):

   Sou capaz de amar o semelhante desde que ele não se pareça muito comigo.

                                              ****  

             Certamente serei lembrado pela rapidez com que vão me esquecer.

                                              ****

             Não me recuso a aplaudir um auditório que me vaia. Afinal, alguém tem que mostrar que está gostando.

                                              ****

             Antes de morrer, quero deixar uma marca. Só me falta o produto.

                                              ****             

       Tentei fazer um pacto com o diabo, mas ele recusou. Disse que eu não mereço confiança.

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        Definitivamente, em matéria de beleza masculina eu não faço o meu tipo.

                                             ****

O indivíduo tem que gostar de si mesmo, e isso para mim não é problema. Eu me amo – só que não sou correspondido.

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Não basta se conhecer. É preciso também se perdoar. O problema é que, quanto mais o indivíduo se conhece, mais difícil é para ele perdoar-se.  

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Sou muito bom naquilo que não faço.

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Não costumo culpar ninguém pelos meus erros. Sou autoinsuficiente. 

domingo, 2 de outubro de 2016

Desistência

Ele chegou para a mulher e disse:
-- Luísa, não dá mais. 
-- O quê!? Como assim?
-- Desculpe... Eu me esforcei, mas sinto que cheguei ao limite da minha resistência.  
-- Tem certeza? Na nossa última conversa você disse que ia continuar insistindo... por nós dois.
-- Eu falei isso mais pra te consolar. Não queria que você se decepcionasse nem perdesse a esperança. Muito menos lhe causar constrangimento.
-- Constrangimento?! É muito mais, é decepção. Você sabe qual foi meu grau de investimento nisso tudo -- investimento emocional e financeiro. 
-- Entendo, entendo... Mas seja razoável. Eu não estou me sentindo bem. Tem dias em que não consigo suportar o peso. Compreenda as minhas razões, por favor.
-- Eu compreendo, sim. Qual o remédio?
-- O remédio é desistir. Pelo bem da minha saúde.
-- Não imaginei que você estivesse assim. Parecia tão envolvido... O problema é de afinação?
-- Não. Até que somos afinados. É mesmo peso, cansaço... Você pensa que eu não lamento?  Imaginei o sucesso que ainda podíamos fazer diante dos amigos, as festas a que nos convidariam.
-- Festas?! Podíamos curtir mesmo aqui sozinhos. Para mim era o bastante. Eu te ouviria por horas... Sonhei com isso anos e anos.
-- Eu sei... Mas está ficando pesado demais.
-- Eu deveria ter escolhido outro...  
-- É verdade. Talvez com outro desse certo. Outro menos complicado e mais leve.
-- Mas não se torture; tive minha parte de culpa nisso. Quando escolhi, fui influenciada pela imagem do meu pai. Ele era o modelo que eu pensei que você poderia seguir. Só que você é outro. Cada qual é o que é.
-- E então? Sem mágoas?
-- Sem mágoas. E já que você está mesmo decidido, vou daqui a pouco à loja devolver o acordeom. Posso ao menos trazer um violão? Não era o instrumento que meu pai tocava, mas talvez você se adapte melhor a ele.
-- Traga. E como violão deve ser mais barato, não se esqueça de pedir a diferença.

sábado, 1 de outubro de 2016

Diálogos (14)

   O compadre da cidade encontra o do interior e se queixa:
 -- Ah, esse mundo cibernético... O meu filho passa o dia na Rede. E o seu?
 -- O meu também. E não para de se balançar.  
 ****
-- Joãozinho, na frase “Pedro se perdeu no shopping”, como se classifica o sujeito?
-- “Desorientado”, professora.
 ****
-- Segundo Freud, as mulheres têm inveja do pênis.
-- Não do meu.
 ****
-- Mamãe, Luisinho me chamou de galinha!
-- Eu não chamei você de galinha. E pare de cacarejar!
 ****
-- Aquele filme me fez sonhar.
-- Já sei, lhe emocionou.
-- Não! Dormi. 

Dia do Beijo